Cardeal Eugênio de Araújo Sales
Arcebispo do Rio de Janeiro
Arcebispo do Rio de Janeiro
Esta solene concelebração de ação de graças pelo encerramento da fase diocesana do Processo de Beatificação e Canonização de Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira se insere entre as efemérides notáveis desta Província, deste Estado, da Arquidiocese de Olinda e Recife. Para o Brasil, a exaltação deste Servo de Deus é um fator importante no fortalecimento da estrutura moral, pelo exemplo dado no cumprimento do seu dever como sucessor dos apóstolos. Mas ainda valiosa a contribuição à vida da mesma Igreja, em nossa Pátria e em nossos dias. O pastor se sacrificou a serviço da fidelidade à doutrina, à disciplina eclesiástica. Com coragem e prudência arrostou, entre outros sofrimentos, a perda da liberdade.
Muito me honra o convite do zeloso pastor, Dom Frei José Cardoso Sobrinho, para presidir essa concelebração. A Arquidiocese do Rio de Janeiro está profundamente vinculada a esta Igreja de Olinda e Recife. Do Rio veio Dom Helder Camara; do Rio, veio Dom Leme, que retornou à então Capital do País como sucessor de Dom Arcoverde, filho deste Estado de Pernambuco e primeiro cardeal da América Latina. Por outro lado, Dom Vital, em janeiro, prisioneiro no Arsenal da Marinha, foi assim saudado por Dom Pedro Maria de Lacerda, ao visitá-lo: “Excelência, tem toda a jurisdição nesta terra. Vejo em Vossa Excelência um prisioneiro de Cristo; meu clero, meu cabido serão felizes, pondo-se às suas ordens”.
A amizade fraterna e a comunhão na defesa da verdade e da liberdade da Igreja uniram, desde então, Dom Vital, Bispo de Olinda e a Diocese do Rio de Janeiro.
A primeira leitura, da 2ª Carta de São Paulo ao dileto filho Timóteo, escrita na prisão, já no acaso da vida, no capítulo IV, que ouvimos há pouco, é uma solene admoestação perfeitamente posta em prática por Dom Vital. A resposta do Servo de Deus a esse trecho da Carta do Apóstolo foi admiravelmente afirmativa. E hoje, pelo exemplo, ele encarece à Igreja do Brasil, ao Episcopado em particular, a observância das diretrizes dadas por Paulo. Neste momento quero recordar a atitude de um sucessor dos apóstolos, obedecendo às normas dadas por Paulo a Timóteo.
O Imperador Dom Pedro II, querendo demonstrar gratidão pelo grande trabalho que os capuchinhos realizavam no Império, desejou que um de seus membros fosse elevado ao episcopado. Vacante a Sé de Olinda, a escolha recai sobre o jovem frade brasileiro. Dom Vital tinha apenas 27 anos, nessa oportunidade.
Proposto o seu nome, o Papa Pio IX confirma-o na função e profeticamente lhe escreve: “Hás de estrenuamente defender a causa de Deus e nada omitir do que possas dizer a respeito da causa da salvação em proveito do rebanho a ti confiado”. Ordenado bispo na Catedral de São Paulo, a 17 de março de 1872, teve como sagrante o bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda, que durante o duro período da “Questão Religiosa” lhe seria amigo, irmão fiel. A 24 de maio do mesmo ano toma posse da Sé de Olinda, escrevendo, então, sua primeira Carta Pastoral aos diocesanos onde transparece todo o seu zelo: “Saúde, forças, faculdades e até a própria vida, tudo, tudo agora pertence a vós!”.
Período difícil e conturbado encontra Dom Vital ao assumir o seu múnus episcopal. O regalismo criara intromissões lastimáveis na vida eclesial, acarretando dependência da Igreja ao poder civil, enfraquecendo a disciplina eclesiástica e multiplicando abusos. Ao ser suspenso um sacerdote no Rio de Janeiro, após participar de grande festa maçônica, toda uma manifestação anticlerical se fez propagar por todo o país. Graves ofensas á religião foram veiculadas e os bispos afrontados em sua autoridade pastoral. Em Plinda e Recife, esgotados todos os expedientes paternos, Dom Vital lança, por fim, o interdito sobre algumas Irmandades rebeldes. Estas, por sua vez, apresentaram recursos ao Imperador contra a decisão do bispo. Era o estopim da chamada “Questão Religiosa”.
O ministro do Império e amigo pessoal de Dom Vital, Conselheiro João Alfredo, escreve-lhe pedindo que transija. A resposta do bispo é digna de quem segue as diretrizes do apóstolo Paulo, em sua epístola a Timóteo: “Que fazer diante do dever? Quando mesmo já fosse eu um bispo octogenário, tendo apenas alguns dias de vida, não trairia os deveres de minha missão”. E mais adiante: “Compreenda Vossa Excelência que esta questão é de vida ou morte para a Igreja do Brasil. Cumpre-nos antes, arcar com os maiores sacrifícios que afrouxar. Procederei sempre com muita calma, prudência e vagar: porém ceder, e não ir avante é impossível. Não vejo meio termo”. Esta carta traz a data de 27 de fevereiro de 1873.
Dom Vital é para nós um exemplo e um estímulo. Seu testemunho de fidelidade ao Evangelho, sem concessões nem desvios, é sempre atual. Ele procura a autenticidade eclesial, a autonomia da Igreja diante do poder civil, a afirmação de seus direitos. Ao tomar posição firme e esgotados os recursos da caridade, Dom Vital tornou-se o bispo da opção. Entre acomodar-se e transigir, preferiu resistir.
A figura de Dom Vital é modelo digno de ser apresentado aos nossos jovens: “Hoje dizia ele, em sermão pronunciado em Versailles, o padre há de ser homem de sacrifício: há de fazer a Deus o sacrifício de seu corpo e de sua vida. Ele deve acostumar-se a olhar o martírio sem receio. Somente com esta condição poderá cumprir sua missão de defender, até o fim, os direitos da Igreja e da verdade”. Coerente consigo mesmo e com a sua vocação, Dom Vital foi fiel até o fim: “Se no início de minha vida religiosa tivesse previsto a estranha sorte dolorosa que estava reservada, ainda com melhor vontade, teria desejado cumpri-la”. Exemplos como este devem ser recordados às novas gerações, porquanto são fruto da autenticidade cristã.
O Evangelho de São João, lido nesta missa solene, nos descreve Jesus o Bom Pastor. Dom Vital seguiu os passos do Senhor. Ele, que deu a vida pelas ovelhas, defendendo-as do erro, “abre a porta do redil das ovelhas; quem sobre por outro lugar é ladrão ou assaltante (10,1)”.
O pastor é arrancado do seu rebanho. Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira, o bispo de Olinda, está em sua residência, o Palácio da Soledade. Às 13 horas e um quarto, de 2 de janeiro de 1874, recebe ordem de prisão. Toma as vestes pontificais, com mitra e báculo. Prepara e lê um protesto, declarando que “em face de nosso rebanho muito amado e de toda a Santa Igreja de Jesus Cristo, da qual somos bispo, posto que muito indigno, só deixamos esta cara diocese que foi confiada à nossa solicitude e vigilância, porque dela fomos arrancados violentamente pela força do Governo”. Impedido pelo Juiz de ir a pé, é transportado para a corveta “Recife”, conduzido ao Rio de Janeiro, encarcerado no Arsenal da Marinha.
Memorável é este dia para esta Arquidiocese de Olinda e Recife e de todo o Brasil, quando é encerrada a fase diocesana do Processo para a Beatificação deste Servo de Deus. No passado, o grande propugnador da Causa de Dom Vital foi Frei Félix de Olívola. Além de sua obra de fôlego, a biografia, preparou valiosa documentação e viajou a Roma para entregá-la aos capuchinhos, na expectativa da beatificação do 20º bispo de Olinda. Na viagem por navio, teve morte súbita. Seu corpo foi jogado ao mar, com toda a bagagem. Fracassou, assim, a primeira tentativa concreta.
Em 24 de julho de 1953, o então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Antônio de Almeida Moraes Junior, nomeou uma comissão para recolher o material histórico. Em 1960, instaurou o Processo sobre os escritos e constituiu um Tribunal arquidiocesano.
Lamentavelmente, os trabalhos foram paralisados no fim da década e o movimento em torno de Dom Vital arrefeceu. A atitude heroica dessa figura notável de pastor fiel é hoje quase desconhecida, especialmente da juventude, tão carente de bons exemplos. Dom Vital foi extraordinário em sua fidelidade à Igreja e obediência ás suas normas, mesmo a custas de grandes sofrimentos. O conhecimento desse Processo ajuda-nos no cumprimento de nossos deveres de cristãos. Oportuno, portanto, reavivar a memória nacional no tocante a esse episódio da história, perseguição e encarceramento de um sucessor dos apóstolos, por urgir, no interior da própria Igreja, o cumprimento da legislação eclesiástica.
Felizmente – e é merecimento do atual arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho – foi reaberto o Processo, a 14 de janeiro de 1992. Para fundamentar o pedido de reconhecimento das virtudes heroicas de Dom Frei Vital,por parte da Santa Sé, a Comissão Especial teve a incumbência de realizar uma pesquisa histórica a respeito das etapas do mesmo Processo, concluído no passado. Em 1993, Monsenhor Francisco de Assis Pereira, do clero potiguar, foi designado “postulador da Causa”.
Aqui estamos agradecendo ao Senhor o término da fase diocesana deste Processo. Agradecemos a Deus o extraordinário e benemérito trabalho realizado. E pedimos ao Senhor Jesus as graças necessárias para alcançar o êxito desejado: a elevação à honra dos altares do Servo de Deus Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira. Esse reconhecimento de suas virtudes heroicas muito beneficiará a Igreja e nossa pátria. A desejada beatificação será a proclamação dos méritos do grande bispo. Ele é um testemunho claro e explícito de nossa fé.
A coragem, quando unida à prudência, é uma das virtudes de grande importância na vida eclesial, também em nossos dias. No ambiente reinante no mundo de hoje, muitas vezes a criatura – e não o Criador – encontra defensores. Dom Vital lutou até ao sacrifício da própria vida, em favor da obra de Cristo.
Homilia Proferida na Basílica de N. Sra. da Penha, em Recife-PE, no dia 04/07/
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