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CAPITULO VII - A preparação do trabalho
A. – A LEITURA
I – Ler pouco.
Trabalhar significa aprender e significa produzir: em ambos os sentidos, o trabalho requer longa preparação, porque produzir é um resultado, e só aprende, em matéria árdua e complexa, quem primeiro atravessou o simples e o fácil: "devemos correr para o mar por meio dos regatos, e não de repente" diz S.Tomás.
Ora, a leitura é o meio universal para aprender, e é a preparação próxima ou remota para toda a produção. Nunca pensamos isoladamente: pensamos em sociedade, em colaboração imensa; trabalhamos com os trabalhadores do passado e do presente. Graças à leitura, pode compararse o mundo intelectual a uma sala de redacção ou repartição de negócios, onde cada qual encontra no vizinho a sugestão, o auxílio, a critica, a informação, o ânimo de que carece.
Portanto, saber ler e utilizar as leituras, é necessidade primordial que o homem de estudo não deve esquecer. Primeira regra: lede pouco. Em 1921, no jornal Le Temps, Paulo Souday que, pelo visto, se queria vingar de mim nalguma coisa, agarrou-se a este preceito: "lede pouco", e pretendeu descobrir nele laivos de ignorantismo. O leitor, se leu o jornal, sabe o valor daquela crítica e, sem dúvida, Paulo Souday também o sabia.
Eu não aconselho a restringir parvamente a leitura: tudo quanto fica dito protesta contra semelhante interpretação. Queremos formar um espírito largo, praticar a ciência comparada, manter o horizonte aberto diante de nós, o que não se consegue sem muita leitura. Mas muito e pouco só se opõem no mesmo terreno. Aqui, é preciso muito absolutamente, porque a obra é vasta; mas pouco em relação ao dilúvio de escritos de que a mais insignificante especialidade sobrecarrega hoje bibliotecas e as almas.
Proscrevemos, sim, a paixão de ler, a ânsia, a intoxicação por excesso de nutrição espiritual, a preguiça disfarçada que prefere ao esforço a frequentação fácil. A paixão da leitura, de que tantos se prezam como de preciosa qualidade intelectual, é tara, é paixão em tudo semelhante às demais paixões que absorvem e perturbam a alma, retalhando-a de correntes confusas que lhe esgotam as energias.
Leia-se com inteligência, não com paixão. Vamos aos livros como a dona de casa vai à praça, depois de cumpridas as ocupações quotidianas de acordo com as leis da higiene e da boa administração. A dona de casa não vai à praça com o mesmo intuito com que vai à noite ao cinema. O mesmo sucede com a leitura: é questão, não de gozar e de se embriagar, mais de governar e administrar bem a casa.
A leitura desordenada não alimenta, entorpece o espírito, torna-o incapaz de reflexão e concentração e, por conseguinte, de produção; exterioriza-o no seu interior, se assim se pode dizer, e escraviza-o às imagens mentais, ao fluxo e refluxo das ideias que ele se limita a contemplar na atitude de simples espectador. É embriaguez que desafina a inteligência e permite seguir a passo os pensamentos alheios e deixar-se levar por palavras, por comentários, por capítulos, Por tomos. A série de excitações assim provocadas arruina as energias, como a constante vibração estraga o aço. Não esperemos trabalho verdadeiro de quem cansou os olhos e as meninges a devorar livros; esse encontra-se, espiritualmente, em estado de cefalalgia, ao passo que o trabalhador, senhor de si, lê com calma e suavidade somente o que quer reter, só retém o que deve servir, organiza o cérebro e não o maltrata com indigestões absurdas.
Ide antes dar um passeio, ler no livro imenso da natureza, respirar o ar fresco, distrair-vos. Depois da actividade tomada voluntariamente, organizai a distracção voluntária, em vez de vos entregardes a um automatismo que de intelectual só tem a matéria, mas que em si é tão banal como o escorregar por uma encosta ou o escalar uma montanha.
Fala-se da necessidade de estar 'ao corrente', e decerto um intelectual não pode ignorar o género humano, menos ainda desinteressar-se do que se escreve na esfera da sua especialidade; cuidado, porém, não vá a 'corrente' arrastar todas as disponibilidades laboriosas e, em vez de vos levar para diante, imobilizar-vos. Para avançar, é preciso remar; nenhuma corrente, por si só, vos conduzirá aonde quereis chegar. Abri, por vós próprios, o caminho, e não enveredeis por todas as sendas que se vos oferecem.
A restrição deve afectar sobretudo as leituras menos substanciais e menos sérias. Não falemos do veneno dos romances. Um ou outro de quando em quando por distracção e para não perder de vista alguma glória literária; mas que seja pura concessão porque a maior parte dos romances abalam e não repousam, agitam e desorientam os pensamentos.
Quanto aos jornais, defendei-vos deles tanto mais energicamente quanto mais constantes e indiscretos são os seus ataques. Convém saber o que os jornais contêm; mas é tão reduzido o conteúdo! E seria tão fácil informar-se dele, sem necessidade de se instalar em intermináveis sessões da preguiça! Em todo o caso, há horas mais adaptadas para a corrida às notícias do que a hora do trabalho. O trabalhador consciencioso deveria contentar-se com a crónica semanal ou bimensal duma Revista, e recorrer aos jornais só quando lhe apontem algum artigo notável ou acontecimento grave.
Em resumo: podendo recolher-vos, ponde de parte a leitura; lede unicamente, excepto nos momentos de distracção, o que respeita ao fim em vista, e lede pouco, para não devorar o silêncio.
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